Demarcações em risco – Parecer 001/AGU sob a ótica dos servidores da Funai

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Foto: Wilson Dias

 

A Indigenistas Associados (INA), tendo em vista seus objetivos fundamentais de
posicionar-se e incidir na formulação e execução da política indigenista a partir da
perspectiva da autonomia dos povos indígenas, em defesa do Estado pluriétnico e
democrático, bem como de defender e promover direitos, interesses e prerrogativas
coletivas dos servidores da Fundação Nacional do Índio – Funai, apresenta, nesta Nota
Técnica, considerações acerca do Parecer Normativo nº001/2017/GAB/CGU/AGU da
Advocacia-Geral da União – AGU que acrescentem, à já existente produção crítica a
seu respeito, a perspectiva de quem trabalha no órgão indigenista de Estado.

O Parecer nº 001 é o instrumento adotado pela Advogada-Geral da União, com
aprovação da Presidência da República, a fim de que seja obrigatoriamente observado
pelos órgãos da Administração Pública Federal, direta e indireta. Preconiza, em resumo,
que as diretrizes jurídicas estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento
do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol sejam aplicadas ao
conjunto das políticas indigenistas, e, portanto, em todos os processos de demarcação de
terras indígenas no país.

Por “diretrizes” entendam-se não apenas as dezenove condicionantes elencadas
no acórdão do referido julgamento e textualmente reproduzidas na conclusão do
Parecer, mas, também, dois outros aspectos de consideráveis implicações para os
procedimentos administrativos de identificação, delimitação e demarcação de terras
indígenas: o primeiro deles é a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos
indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando na data de promulgação
da Constituição Federal – 05 de outubro de 1988 –, ressalvados os casos em que a
ausência de ocupação indígena possa ser atribuída a “renitente esbulho” por parte de
não índios, o que supõe comprovação de existência, naquela data, de efetivo conflito
pela posse da terra ou contenda judicial acerca da matéria. O segundo aspecto é a
vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.

Oficializado em julho de 2017, o Parecer teve o pronto repúdio da sociedade
civil, por meio de diversas manifestações de organizações indígenas e indigenistas,
incluindo petições e representações junto ao Ministério Público Federal (MPF). Em
Nota Técnica datada de março de 2018, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão –
Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais/MPF argumentou detalhadamente
sobre os aspectos de inconstitucionalidade e ilegalidade do instrumento, defendendo que
a AGU o anule.

No mês de abril, como resposta à intensa mobilização indígena contrária ao
Parecer por ocasião do Acampamento Terra Livre/2018, a AGU instituiu Grupo de
Trabalho (GT) destinado a propor orientações para sua aplicação, o que, por si só,
demonstra o caráter controverso da medida. Entre os titulares e suplentes indicados por
diversos órgãos, a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai (PFE-Funai),
estrutura da AGU de atuação adjunta à Funai, compõe o GT. Contudo, não há nenhum
titular ou suplente da própria Fundação Nacional do Índio no Grupo de Trabalho, isto é,
o debate sobre a aplicação de diretrizes para o ordenamento territorial das terras
indígenas deverá ocorrer em uma mesa sem nenhum representante do órgão indigenista
oficial do país. É no contexto em que o GT ainda não apresentou seus resultados que a INA recorre à presente Nota Técnica para contribuir com as vozes que, colocando em
evidência efeitos e significados deletérios do Parecer nº001, têm clamado por sua
revogação.

Efeitos do Parecer sobre o processo de demarcação de terras indígenas

Até 1988, as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas dotava-se de
caráter assimilacionista, entendendo-se o “índio” como uma condição transitória a ser
superada a partir de sua progressiva e inexorável integração à “civilização” ou à
sociedade nacional. Nesse contexto, as terras ou reservas indígenas eram arbitrariamente determinadas e demarcadas em superfícies diminutas, abrangendo, na maior parte dos casos, tão somente áreas de moradia. Entre as principais inovações da Constituição Federal de 1988 estão o “direito à diferença” e a perspectiva de futuro assegurada aos povos indígenas a partir do reconhecimento de suas terras. O artigo 231 prevê, então, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios levam em conta os “usos, costumes e tradições” de cada povo, reconhecendo o direito dessas populações de se manterem culturalmente diferenciadas.

O reconhecimento das terras indígenas pelo Estado brasileiro é um
procedimento cujas etapas estão determinadas pelo Decreto nº 1.775, de 1996, e
normativas complementares, tais como a Portaria nº 14 do Ministério da Justiça (MJ),
do mesmo ano. Grosso modo, essas etapas compreendem:

1) realização de estudos de identificação e delimitação e publicação do resumo
do relatório respectivo, a cargo da Funai;

2) recepção e elaboração de respostas a contestações de área identificada como
terra indígena, a cargo da Funai;

3) publicação de Portaria que declara os limites da terra indígena, a cargo do
Ministro da Justiça;

4) realização da demarcação física, a cargo da Funai;

5) realização de avaliação de benfeitorias implementadas por ocupantes não
índios, a cargo da Funai, conjuntamente com o cadastramento desses ocupantes, a
cargo do Incra;

6) publicação de Decreto de homologação da demarcação, a cargo da
Presidência da República;

7) retirada de ocupantes não índios, com pagamento de benfeitorias
consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não índios
que atendem ao perfil da reforma agrária, a cargo do Incra;

8) registro da terra indígena na Secretaria de Patrimônio da União e em
cartório da unidade federada em que se situe, a cargo da Funai.

As diretrizes emanadas pelo Parecer nº001 da AGU vêm afetando
significativamente a atuação dos servidores da Funai no que tange ao cumprimento de
uma das finalidades da instituição, qual seja, garantir o direito originário, a
inalienabilidade e a indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam os
indígenas, por meio da realização de estudos de identificação e delimitação,
demarcação, regularização fundiária, registro e proteção dessas áreas. Após a edição do
Parecer, processos referentes à demarcação de terras indígenas têm retornado do MJ à
Funai exigindo manifestações que atendam ao novo instrumento, especialmente no que
diz respeito aos já mencionados “marco temporal” e vedação à ampliação, bem como à
sobreposição com unidades de conservação, o que pode ser considerado uma leitura abusiva das condicionantes VIII a X do acórdão relativo à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, como já apontado pelo Ministério Público Federal por meio da Nota Técnica nº 02/2018-6CCR. Os seguintes processos de demarcação retornaram do MJ para a área técnica da Funai — sob o argumento de análise e manifestação ante às condicionantes impostas pelo Parecer — apenas entre o período de agosto de 2017 e fevereiro de 2018:

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Além disso, foram recebidos mais de trinta requerimentos de particulares
pedindo a anulação de procedimentos à luz da nova normativa e quase cinquenta
pareceres relativos a contestações de terras indígenas identificadas e delimitadas
tiveram que ser reavaliados. A sobrecarga de processos retornados trouxe intenso
questionamento por parte dada Funai sobre a equipe técnica envolvida quanto ao
tempo para conclusão dos processos e suposto desrespeito ao princípio da eficiência
na administração pública, trazendo mais insegurança à instituição e aos servidores na
execução de trabalhos.

O Parecer nº 001 tem também se convertido em mais um recurso, entre os já
usados como pressões políticas sobre a Funai, seus servidores e o andamento de
procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Exemplo disso é a
Indicação 4.622/2017, de dezembro de 2017, documento da Câmara dos Deputados
encaminhado à Casa Civil da Presidência da República e desta à Funai, com a
sugestão de “adoção de medidas administrativas cabíveis no sentido de intervir junto
à FUNAI para fazer com que esta entidade autárquica federal cumpra e observe as
diretrizes e normativas estabelecidas em caráter vinculante pelo Parecer da AGU nº
001/2017 ao fim (sic) de garantir a integridade física das pessoas e evitar o conflito
armado que está na eminência (sic) de ocorrer na região de fronteira dos estados do
Paraná e Mato Grosso do Sul”. No referido documento, o Parecer surge ao lado de
conhecido rol de assuntos, costumeiramente desfiados por deputados integrantes da
bancada ruralista ao tratar da temática indígena: supostas irregularidades na atuação
de ONGs apuradas pela CPI da Funai e do Incra; menção a audiência pública da qual
participaram produtores rurais do Paraná e Mato Grosso do Sul com o intuito de
debater as demarcações de terras indígenas, em que “foram relatadas denúncias
quanto à atuação de agentes públicos da Funai” nos municípios paranaenses de Terra
Roxa e Guaíra; suposto risco aos direitos de propriedade bem como aos direitos
indígenas com o fomento de conflitos por parte desses atores. O documento garante,
por fim, que na região em questão não haveria ocupação indígena em outubro de
1988, agarrando-se, portanto, ao “marco temporal”, fortalecido pelo Parecer da AGU.

Questões em aberto

Do ponto de vista técnico, de quem atua nos procedimentos administrativos
relativos à demarcação de terras indígenas, o Parecer deixa um conjunto de questões
em aberto. Desde logo, há de se questionar acerca da possibilidade de que o
instrumento seja aplicado, de modo retroativo, a procedimentos de identificação e
delimitação concluídos (com relatório já publicado) e a procedimentos em curso
(estudos em fase de elaboração ou relatórios em fase de análise). Nota-se que, mesmo
em casos de estudos ainda não concluídos e relatórios não publicados, longas etapas
de pesquisa documental e de campo já foram realizadas sem que houvesse prescrição
quanto à necessidade de comprovação do “marco temporal” ou de “renitente
esbulho”, nos termos restritivos apresentados no texto do Parecer.

A eventual aplicação do Parecer aos 115 casos de estudos de identificação e
delimitação em curso e ainda não concluídos obrigaria à realização de pesquisas
complementares não previstas pela Portaria MJ nº 14, o que retardaria ainda mais a
conclusão de procedimentos, alguns dos quais iniciados no início dos anos 2000. Para
além do prejuízo às populações indígenas, que lutam há décadas pela garantia de seu
direito constitucional ao reconhecimento de suas terras, e do atentado aos basilares
princípios da razoabilidade e da eficiência na administração pública, a revisão de
procedimentos em curso para fins de atendimento ao Parecer impactaria no
cumprimento de prazos judiciais para sua conclusão. Com efeito, há um conjunto de
decisões judiciais compelindo a Funai a concluir procedimentos demarcatórios em
prazo determinado, sob pena de pagamento de multas. Em alguns casos, como em
Mato Grosso do Sul, processos demarcatórios são objeto de instrumentos de
Ajustamento de Conduta firmados pela Funai junto ao Ministério Público Federal,
sendo discutível que a vinculação exercida pelo Parecer sobre a Administração
Pública Federal possa estender-se e trazer implicações para o cumprimento de
instrumentos dessa natureza.

Questiona-se, ainda, sobre a aplicabilidade do Parecer a atos que inauguram ou
dão continuidade a procedimentos que objetivam reestudo de limites de terra indígena
já demarcada, considerada, aqui, a “vedação de ampliação”. Tenha-se em mente que
grande parte dos procedimentos de reestudo de limites decorre de violações dos
direitos territoriais indígenas pelo próprio Estado brasileiro, especialmente durante o
período da ditadura civil-militar (1964-1985), quando diversos povos sofreram
reduções territoriais arbitrárias, houvesse ou não áreas oficialmente demarcadas.

Internamente à Funai, vive-se uma indefinição entre aguardar orientações mais
precisas da AGU acerca das consequências do Parecer para os procedimentos
demarcatórios ou aplicar o instrumento desde logo, com todas as consequências aí
implicadas. Em outubro de 2017, a Diretoria de Proteção Territorial expediu
Memorando-Circular às Coordenações-Gerais que lhe são subordinadas, preceituando
que “os procedimentos administrativos que visem novas constituições de Grupos de
Trabalhos devem aguardar até que a Procuradoria Federal Especializada manifestese
acerca da consulta desta Diretoria sobre o tema”. Oito meses depois, contudo,
novo Memorando da mesma Diretoria veio orientar pela aplicação do Parecer “a
todos processos de demarcação de terras indígenas”, o que faz vistas grossas à
existência e propósito do GT em curso na AGU e, também, à Nota Técnica da 6ª
Câmara/ PGR, que termina advertindo os servidores da Administração Pública
Federal a que, “cientes da manifesta nulidade do parecer normativo, não se escusem de dar fiel cumprimento à legislação (constitucional, internacional e
infraconstitucional)”.

Insegurança Jurídica e Processual

Imprescindível considerar aspecto adicional do retorno de procedimentos
demarcatórios à Funai com vistas à reavaliação técnica e jurídica “à luz do Parecer
001”. O retorno implica ignorar pareceres jurídicos anteriormente emanados pela
PFE-Funai e pela Consultoria Jurídica/ MJ, que reconhecem a legalidade e a
regularidade dos processos em questão e, portanto, a tradicionalidade da ocupação
indígena. Ora, em casos de terras indígenas já delimitadas e declaradas, que estão na
iminência de serem declaradas (no primeiro caso) e homologadas (no segundo), os
atos administrativos que instruíram os processos são anteriores ao Parecer, restando
como óbvia a impossibilidade de que se tenham pautado por critérios estabelecidos
pelo novo instrumento da AGU. Seguiram fielmente, contudo, a legislação vigente – o
Artigo 231 da Constituição Federal, o Decreto nº 1.775/ 96 e a Portaria MJ nº 14/ 96 –, conforme atestado nos pareceres jurídicos por cima dos quais hoje se passa.

Ao contrário, portanto, do que tem sido alegado em defesa do Parecer,
trata-se de medida que reveste de insegurança jurídica e administrativa toda a
sistemática de reconhecimento de direitos territoriais indígenas. A insegurança
afeta tanto terras indígenas já delimitadas e declaradas, como se acaba de dizer,
quanto terras que são objeto de estudos em curso ou ainda por instaurar-se, os quais
passam a dever ser conduzidos sob um marco de entendimento que é inconsistente
com o caráter da ocupação espacial da maioria dos povos indígenas. Um marco,
sobretudo, que legitima a história de violência e expropriação territorial a que foram
submetidos os povos indígenas.

Indigenistas Associados

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